domingo, novembro 23, 2003

"BENCH' Á TANTI MARTIR..."

Giordano Bruno


Bem que a martírios tu me tens sujeito
devo-te muito e te sou grato, Amor:
com nobre chaga me rasgaste o peito,
e o coração me deste a um tal senhor,

de tão excelso e de tão vivo aspeito,
na terra imagem do divino autor.
Pense quem quer que é ímpio o meu destino
se morro esp'rança e vivo desatino.

Contenta-me alta empresa;
e quando o fim clamado me escapara,
e em tanto arder minh'alma se gastara,

basta que seja nobremente acesa,
e que eu mais alto ascenda
e do número ignóbil me defenda.
(Tradução de Jorge de Sena)

ROMANCE DE AVALOR

Bernardim Ribeiro


Pela ribeira dum rio
que leva as águas ao mar
vai o triste de Avalor,
não sabe se há de tornar.
As águas levam seu bem;
ele leva o seu pesar.
só vai e sem companhia,
que os seus fora deixar:
que quem não leva descanso,
descansa em só caminhar.
Descontra onde ia a barca
se ia o sol abaixar;
indo-se abaixando o sol
escurecia-se o ar;
tudo se fazia triste
quanto havia de ficar
Da barca levantam remos
e ao som do remar
começaram os remeiros
do barco este cantar:
"Que frias eram as águas!
Quem as haverá de passar?"
Dos outros bancos respondem:
"Quem as haverá de passar
senão quem a vontade pôs
onde a não pode tirar."
Trás a barca o levam olhos
quanto o dia dá lugar.
Não durou muito, que o bem
não pode muito durar.
Vendo o sol posto, contra ele,
soltou os olhos ao chorar;
soltou rédea a seu cavalo,
da beira do rio a andar:
e a noite era calada
pera mais o magoar,
que o compasso dos remos
era o do seu suspirar:
querer contar suas mágoas
seria areias contar.
Quanto mais se ia alongando,
se ia alongando o soar:
de seus ouvidos aos olhos
a tristeza foi igualar.
Assi como ia a cavalo
foi pela água dentro entrar;
e dando um longo suspiro
ouvira longe falar:
"Onde mágoas levam alma,
vão também corpo levar":
mas indo assi por acerto
foi c'um barco n'água dar,
que estava amarrado à terra
e seu dono era a folgar.
Salta assi como ia dentro
e foi a amarra cortar:
a corrente e a maré
acertaram-no ajudar.
Não sabem mais que foi dele
nem novas se podem achar,
suspeitou-se que era morto
mas não é para afirmar,
que não no embarcou ventura
para isso o foi guardar.
Mas são as águas do mar
De quem se pode fiar.

sábado, novembro 22, 2003

Francisco Sá De Miranda

SOBRE A PRISÃO DUM SEU GALEGO
A SEU CUNHADO MANUEL MACHADO,
SENHOR DA TERRA
D'ANTRE HOMEM E CÁVADO


Inda que eu ria e me cale,
que me eu faça surdo e cego,
bem vejo eu porque o da Vale
correu tanto ao meu galego!
Como c'um leão fez festa!
Mas inda mal, a la fé,
porque um escrito na testa
não traz cada um de quem é.

Antre craros e escuros,
ladrões de seiscentas cores
andam por aqui seguros,
não lhe saem tais corredores.
Após quem toma por si
e primeiro mata ou morre
não corre o da Vale assi,
que após um tolo assi corre.

Bom matador, bom ladrão
que fugindo arma entretanto,
deixou acolher bastião,
que pica e não rende tanto!
Vive pola tua pena,
outrem prenda, outrem condene,
não me toque no da pena
em que te as barbas depene.

Escreves polo Ribeiro,
anda após o mais proveito.
Hás-de pagar o dinheiro,
ganham a torto ou a dereito.
Deixa andar os encartados,
deixa-os, que tem os caminhos
de palhetos ouriçados,
que andam como porcos espinhos.

Come e bebe, pois te presta.
Não cures das assoadas
que se vem juntas à festa
e vos têm todos em nadas.
Onde vires um coitado
que, em te vendo, perde a cor,
dá após ele, homem ousado!
Não se vá tal malfeitor!

Executores da lei,
havei vergonha algum dia!
Este chama: aqui del-rei!
estoutro chama: a valia!
outro chama: Portugal!
De varas não há i míngua.
Desata a bolsa, que val,
traze sempre atada a língua.

Carmina Burana

"IN TABERNA..."


Na taberna quando estamos,
De mais nada nós curamos,
Que do jogo que jogamos,
Mais do vinho que bebemos.
Quando juntos na taberna,
Numa confusão superna,
Que fazemos nós por lá?
Não sabeis? Pois ouvi cá.

Nós jogamos, nós bebemos,
A tudo nos atrevemos.
O que ao jogo mais se esbalda
Perde as bragas, perde a fralda,
E num saco esconde o couro,
Pois que um outro conta o ouro.
E a morte não val' um caco
Pra quem só joga por Baco.
Nossa primeira jogada
É por quem paga a rodada.
Depois se bebe aos cativos,
E a seguir aos que estão vivos.
Quarta roda, aos cristãos juntos.
Quinta roda,,aos fiéis defuntos.
Sexta, às putas nossas manas,
E sete às bruxas silvanas.

Oito, aos manos invertidos.
Nove, aos frades foragidos,
Dez, se bebe aos navegantes,
Onze, é para os litigantes,
E doze, dos suplicantes,
E treze, pelos viandantes.
Pelo Papa e pelo Rei
Bebemos então sem lei.

Bebem patroa e patrão,
Bebem padre e capitão,
Bebe o amado e bebe a amada,
Bebem criado e criada,
Bebe o quente e o piça fria,
Bebe o da noite e o do dia,
Bebe o firme, bebe o vago,
Bebe o burro e bebe o mago.

Bebe o pobre e bebe o rico,
Bebe o pico-serenico,
Bebe o infante, bebe o cão,
Bebem cónego e deão,
Bebe a freira e bebe o frade,
Bebe a besta, bebe a madre,
Bebem todos do barril,
Bebem cento, bebem mil.

Nenhuma pipa se aguenta
Com esta gente sedenta,
Quando bebe sem medida
Quem de beber faz a vida.
E quem de nós se fiou,
Sem cheta s'arrebentou.
E quem de nós prejulgava,
Se quiser, que vá à fava.

(Tradução de Jorge de Sena)

Fronteira

É doce a tentação do labirinto
assim que o sono chega e se propaga
ao contorno das coisas. mal as sinto
quando confundo a onda sempre vaga

deste falso cansaço que regressa
ao som da minha estranha e dócil fala
cada vez mais submersa como essa
pequena luz da rua que resvala

plo interior da noite. É quase um sonho
A respirar lá fora enquanto o quarto
se dilui na fronteira que transponho
e afoga a consciência de onde parto

agora sem direito nem avesso
no incerto momento em que adormeço.
- Fernando Amaral

Das palavras indiscretas

- Do Espírito das Leis, de Montesquieu.


Não há nada que torne o crime de lesa-majestade ainda mais arbitrário que quando palavras indiscretas constituem a sua matéria. Os discursos são tão sujeitos a interpretação, há tanta diferença entre a indiscrição e a malícia, e tão pouca nas expressões que elas empregam, que a lei quase não pode submeter as palavras a uma pena capital, a não ser que declare expressamente as que submete a essa pena.
As palavras não formam um corpo de delito: elas só persistem na idéia. Na maioria das vezes, elas nada significam em si, mas sim pelo modo que são pronunciadas. Muitas vezes, o silêncio depende da sua relação com outras coisas. Algumas vezes, o silêncio exprime mais do que todos os discursos.

LETRILHA

Gôngora


Esteja-m'eu no quente
e ria-se a gente.

Tratem outros do governo
do mundo e mais monarquias
que hão-de governar meus dias
só manteiga e pão bem fresco,
e pelas manhãs de inverno
laranjada e aguardente,
e ria-se a gente.

Coma em dourada vasilha
o Príncipe mil cuidados
como pílulas dourados,
que em minha pobre mesinha
antes quero uma morcela
que no assador rebente,
e ria-se a gente.

Quando cubra as montanhas
de branca neve o janeiro,
que eu tenha cheio o braseiro
de bolotas e castanhas,
e quem me conte as patranhas
do Rei que morreu demente,
e ria-se a gente.

Passe à meia-noite o mar
e arda em amorosa chama,
Leandro por sua dama.
Que eu antes quero passar
do golfo do meu lagar
a branca ou roxa corrente,
e ria-se a gente.

Pois que Amor é tão cruel
que a Píramo e sua amada
deu por tálamo uma espada onde
se unam ela e el',
seja-me Tisbe um pastel
e a espada seja meu dente,
e ria-se a gente.

(Tradução de Jorge de Sena)

CANÇÃO DE BACO

Lourenço de Medicis


Quanto é bela a mocidade
que se escapa tão andeja!
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Este é Baco mais Adriana,
belos ambos, mui ardentes:
porque o tempo foge e engana,
sempre um do outro vão contentes.
Estas ninfas e outras gentes,
não há del's triste quem esteja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Estes sátiros joviais,
destas ninfas namorados,
por cavernas e pinhais,
mil ardis lhes têm lançados,
ou por Baco já esquentados
saltam de amor que lampeja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Estas ninfas têm temor
de sofrer um desacato:
quem seja rude e ingrato.
Ora em tumulto gaiato
dançam de fazer inveja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Este monstro que vem pronto
sobre um burro, esse é Sileno,
assim velho e alegre e tonto,
de carne e de anos bem pleno:
se não monta sem empeno,
ao menos ri-se e festeja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Este a seguir é o rei Midas
que o que toca ouro se faz.
Mas que importam tais validas,
se tesouros não dão paz?
Tem prazer quem sempre jaz
na sede de que vasqueja?
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Abram todos as orelhas:
do amanhã não haja empachos,
hoje sejam novas, velhas,
ledos todos, fêmeas, machos!
Tristezas vão prós diachos,
e contente tudo esteja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Damas e jovens amantes,
viva Baco e viva Amor!
Haja bailes e descantes!
Arda o peito em doce ardor!
Fora coitas, fora a dor!
O que tem de ser, que seja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

(tradução de Jorge de Sena)

MONÓLOGO DE SEGISMUNDO

Pedro Calderón de la Barca -
(LA VIDA ES SUEÑO, Acto I, Cena I)


Apurar, ó céus, pretendo,
já que me tratais assi,
que delito cometi
contra vós outros, nascendo;
que, se nasci, já entendo
qual delito hei cometido:
bastante causa há servido
vossa justiça e rigor,
pois que o delito maior
do homem é ter nascido.
E só quisera saber,
para apurar males meus
(deixando de parte, ó céus,
o delito de nascer),
em que vos pude ofender
por me castigardes mais?
Não nasceram os demais?
Pois se eles também nasceram,
que privilégios tiveram
como eu não gozei jamais?
Nasce a ave, e com as graças
que lhe dão beleza suma,
apenas é flor de pluma,
ou ramalhete com asas,
quando as etéreas plagas
corta com velocidade,
negando-se à piedade
do ninho que deixa em calma:
só eu, que tenho mais alma,
tenho menos liberdade?
Nasce a fera, e com a pel'
que desenham manchas belas,
apenas signo é de estrelas
(graças ao douto pincel),
quando atrevida e cruel,
a humana necessidade
lhe ensina a ter crueldade,
monstro de seu labirinto:
só eu, com melhor instinto,
tenho menos liberdade?
Nasce o peixe, e não respira,
aborto de ovas e lamas,
e apenas baixel de escamas
por sobre as ondas se mira,
quando a toda a parte gira,
num medir da imensidade
co'a tanta capacidade
que lhe dá o centro frio:
só eu, com mais alvedrio,
tenho menos liberdade?
Nasce o arroio, uma cobra
que entre as flores se desata,
e apenas, serpe de prata,
por entre as flores se desdobra,
já, cantor, celebra a obra
da natura em piedade
que lhe dá a majestade
do campo aberto à descida:
só eu que tenho mais vida,
tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão
um vulcão, um Etna feito,
quisera arrancar do peito
Pedaços do coração.
que lei, justiça, ou razão,
nega aos homens - ó céu grave! -
privilégio tão suave,
excepção tão principal,
que Deus a deu a um cristal,
ao peixe, à fera, e a uma ave?

(Tradução de Jorge de Sena)

«ESTÃO PODRES AS PALAVRAS....»
- Jorge de Sena


Estão podres as palavras - de passarem
por sórdidas mentiras de canalhas
que as usam ao revés como o carácter deles.
E podres de sonâmbulos os povos
ante a maldade à solta de que vivem
a paz quotidiana da injustiça.
Usá-las puras - como serão puras,
se caem no silêncio em que os mais puros
não sabem já onde a limpeza acaba
e a corrupção começa? Como serão puras
se logo a infâmia as cobre de seu cuspo?
Estão podres: e com elas apodrece a mundo
e se dissolve em lama a criação do homem
que só persiste em todos livremente
onde as palavras fiquem como torres
erguidas sexo de homens entre o céu e a terra.

Quando eu tinha 12 anos
por Paulo Portas


Lembro-me perfeitamente. Como se fosse hoje. Vasco Gonçalves apareceu na televisão mais despenteado do que nunca. Parecia sentado numa cadeira, mas na verdade deitava-se nela. Fazia gestos brutos e metralhava palavras de irritação geral com o mundo. Havia baba e raiva. Ele coçava-se e a câmara tremia. Punha e tirava os óculos ao compasso dos amores e dos ódios. Era uma cena de pura violência política no Estado à beira do colapso.
Eu tinha onze anos e espantei-me. Desde pequenino ouvia falar de política em casa, vagamente no colégio dos jesuítas, às vezes na missa. O meu pai achava que a vida faria sentido para mudar o mundo, a minha mãe suspeitava que a desordem do mundo podia dar cabo da nossa vida. Como é natural, eu não tinha opiniões, só impressões. Nem sabia de razões, só de emoções. A aparição do companheiro Vasco teve o efeito de me decidir. A imagem dele faz parte da minha memória do mal. Porque há sempre um momento, sei que Vasco Gonçalves teve a maior importância na minha iniciação militante. Se a primeira vez é importante, ele foi a minha primeira vez em política. Podia tê-lo seguido e ficaria do lado de lá da barricada: talvez fosse hoje um desses homens de esquerda que todos os dias matam a sombra, apagam o lastro e gozam o sistema. Mas não. Devo a Vasco Gonçalves o facto de ser uma criatura irremediavelmente de direita. Olhei para ele e fiquei contra-revolucionário. Daí para a frente, passei a desconfiar dos militares e a detestar o comunismo. Quanto aos militares, façam lá o que fizerem as fardas oficiais, quero-os longe. Quanto aos comunistas, levei tempo a digeri-los. Só agora consigo respeitar um camarada disposto a morrer camarada: é um facto mais digno e humanitário do que a massificação da dissidência. Não passou mais do que um mês. O Império desapareceu num ápice e Portugal tornou-se na pequena República de moda para fotógrafos, sociólogos e curiosos barbudos. O socialismo irreal nascia cá, por aqui se praticava o perfeito suicídio ocidental. Direita não havia: o último mito foi o monóculo de Spínola, homem que se celebrizou por ir à televisão anunciar que, estando o país a saque como estava, ia-se embora como foi. A burguesia tratou de salvar os haveres mais secretos e partiu. No dia em que eu fiz doze anos ganhei um direito que já não se usa: podia filiar-me num partido. Fui a correr pedir uma ficha no grémio juvenil dos laranjinhas. Como se fosse um escuteiro de Sá Carneiro. Vi por lá uma fotografia de Marx e trouxe para casa um livrinho de Bernstein. Não gostei do que vi, nem entendi o que li. Estranhei e por momentos hesitei. Mas não havia muitas opções. Atribuo a um conceito de educação nunca ter acreditado numa só palavra que Mário Soares dissesse. Enquanto as tias que sobravam iam de vison posto para os comícios dele – ‘se isto não é o povo, onde está o povo?’, perguntavam elas – eu achava-o leviano como não se pode ser e mentirolas como não se deve ser. Quanto a Freitas do Amaral, era difícil ouvi-lo nesse tempo. As vezes que o ouvi, parecia-me um bispo; e soava-me de menos, porque uma contra-revolução não se faz pedagogicamente.
Escolhi Sá Carneiro por uma irracionalidade lúcida; e por exclusão de partes. Devo a Sá Carneiro duas coisas: ser democrata e não gostar de política. Na idade que eu tinha e no estado em que o país estava, a tentação natural era tornar reaccionário. Mas Sá Carneiro, a quem segui sem me interrogar, jogava por fora do sistema e por dentro do regime. Marcou as fronteiras do que a direita portuguesa devia ser sempre e nunca mais foi: não há compromisso com a esquerda do sistema nem há compromisso à direita do regime. Era de uma solidão radical, facto dez vezes preferível ao consenso universal. Tinha sinais naturais de classe e por isso é que não parecia frequentável para a maioria dos amigos e inimigos. Conseguiu uma coligação raríssima: era um homem de dizer o que pensava e ao mesmo tempo era um político de pensar o que dizia. E coincidia. Morreu em campanha mas nunca se mortificou pelo Estado.
Nisso, era exemplar. O costume bem conservador e bem possidónio em Portugal é que a política se faz por sacrifício e com sofrimento. Sá Carneiro era um profissional, gostava de jogar e punha tudo em risco. Provou a toda a gente que a direita podia governar Portugal e provou a Portugal que a direita podia ser moderna.
Já passaram muitos anos e Sá Carneiro ainda é a última prova de ambas as teses. Pergunto-me se não foi uma ilusão. Como a águia real no país dos corvos.

Receitas de Azul

O famoso verso: 'Tome um pouco de azul, se a tarde é clara', de Carlos Pena Filho, lembra que foi Rimbaud quem inventou a cor das sonoridades vogais. A cor azul fala do som 'O'. Tradução de O. de Pennafort:

O, fanfarras, clarins, trons de vitória, brados,
O, silêncios azuis de anjos e sóis povoados,
O, clarão vesperal, violáceo, dos seus olhos!

São esses silêncios azuis que só os anjos sabem, os sóis povoados de luz dos seus olhos, clarão vesperal, brados.

O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncios assombrados de anjos e universos:
— Ó ! Ômega, o sol violeta dos Seus Olhos!

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara

e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.


Pessoa, 1917:

Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


Carlos Pena Filho dá a receita: ' Para fazer um soneto':

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.

Sebastião Norões é autor de um famoso soneto — 'Mar da memória' — Lá o azul vem do mar:

Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.

O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,

delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.

Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.

Lá o azul do mar está pintado de 'ânsias de infinito', de vôo, de pensamento cujas distâncias fomentavam longes sonhos, o meu mar, o meu mar interior, o tamanho mar de quando ele era meu mar.

A cor local deve ser a do 'sol de sua cara / e um pedaço de fundo de quintal ' .

E das manchas azulejantes dos venenos / ...... / Onde, tingindo azulidades com quebrantos / ......./ E o acordar louro e azul dos fósforos canoros! /.........../ Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes... / .................../ Líquens de sol e vômitos de azul escuro.

Bacellar:

No livre azul o sossegado vento
lívido sonha linhas de escultura
que moldará nas nuvens no momento
de apascentá-las pela tarde pura.
Num arrepio de pressentimento
o rufo de asa risca na brancura,
o sol arranca brilhos do cimento
do muro novo, a folha cai. Madura.
Tudo o verão proclama: a tarde limpa,
esmaltada de claro; pela grimpa
do morro verde a cabra lenta vai...
A luz resvala na amplidão sonora.
Por que senti roçar-me a face agora
um beijo, um frêmito, um suspiro, um ai?

Azul é o céu, é o espaço. Azul é profundidade, a transparência, o vazio, a liberdade. No livre azul, no mar azul, um pouco de azul da tarde, perdidos de azul, vertiginosamente azul. O azul onde passa o vento.

Ribaud:
No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

Quinto Império

Fernando Pessoa


Vibra, clarim, cuja voz diz. Que outrora ergueste o grito real Por D. João, Mestre de Aviz, E Portugal!
Vibra, grita aquele hausto fundo Com que impeliste, como um remo, Em El-Rei D. João Segundo

O Império extremo! Vibra, sem lei ou com lei, Como aclamaste outrora em vão O morto que hoje é vivo — El-Rei D. Sebastião!
Vibra chamando, e aqui convoca O inteiro exército fadado Cuja extensão os pólos toca Do mundo dado!
Aquele exército que é feito Do quanto em Portugal é o mundo E enche este mundo vasto e estreito De ser profundo.
Para a obra que há que prometer Ao nosso esforço alado em si, Convoco todos sem saber (É a Hora!) aqui!
Os que, soldados da alta glória, Deram batalhas com um nome, E de cuia alma a voz da história Tem sede e fome.
E os que, pequenos e mesquinhos, No ver e crer da externa sorte, Convoco todos sem saber Com vida e morte.
Sim, estes, os plebeus do Império; Heróis sem ter para quem o ser, Chama-os aqui, ó som etéreo Que vibra a arder!
E, se o futuro é já presente Na visão de quem sabe ver, Convoca aqui eternamente Os que hão de ser! T
odos, todos! A hora passa, O génio colhe-a quando vai. Vibra! Forma outra e a mesma raça Da que se esvai.
A todos, todos, feitos num Que é Portugal, sem lei nem fim, Convoca, e, erguendo-os um a um, Vibra, clarim!
E outros, e outros, gente vária, Oculta neste mundo misto. Seu peito atrai, rubra e templária, A Cruz de Cristo.
Glosam, secretos, altos motes, Dados no idioma do Mistério — Soldados não, mas sacerdotes, Do Quinto império.
Aqui! Aqui! Todos que são. O Portugal que é tudo em si, Venham do abismo ou da ilusão, Todos aqui!
Armada intérmina surgindo, Sobre ondas de uma vida estranha. Do que por haver ou do que é vindo — É o mesmo: venha!
Vós não soubesses o que havia No fundo incógnito da raça, Nem como a Mão, que tudo guia, Seus planos traça.
Mas um instinto involuntário, Um ímpeto de Portugal, Encheu vosso destino vário De um dom fatal. De um rasgo de ir além de tudo, De passar para além de Deus, E, abandonando o Gládio e o escudo, Galgar os céus.
Titãs de Cristo! Cavaleiros De uma cruzada além dos astros, De que esses astros, aos milheiros, São só os rastros.
Vibra, estandarte feito som, No ar do mundo que há de ser. Nada pequeno é justo e bom. Vibra a vencer!
Transcende a Grécia e a sua história Que em nosso sangue continua! Deixa atrás Roma e a sua glória E a Igreja sua!
Depois transcende esse furor E a todos chama ao mundo visto. Hereges por um Deus maior E um novo Cristo!
Vinde aqui todos os que sois, Sabendo-o bem, sabendo-o mal, Poetas, ou Santos ou Heróis De Portugal.
Não foi para servos que nascemos De Grécia ou Roma ou de ninguém. Tudo negamos e esquecemos: Fomos para além. Vibra, clarim, mais alto! Vibra! Grita a nossa ânsia já ciente Que o seu inteiro voo libra De poente a oriente.
Vibra, clarim! A todos chama! Vibra! E tu mesmo, voz a arder, O Portugal de Deus proclama Com o fazer! O Portugal feito Universo, Que reúne, sob amplos céus, O corpo anónimo e disperso De Osíris, Deus. O Portugal que se levanta Do fundo surdo do Destino, E, como a Grécia, obscuro canta Baco divino.
Aquele inteiro Portugal, Que, universal perante a Cruz, Reza, ante à Cruz universal, Do Deus Jesus.

"Sob as acácias floridas"

Mario Antonio (Angola)


1

Com Novembro a chiar nestas cigarras
as acácias sangrando suas flores
e um sol afirmativo num céu alto
Espero a tua carta e a minha vida
Uma pausa do tempo em minhas mãos
preenchida pela contagem das horas
nas cigarras e pétalas caídas.

2

A rua corre larga e sossegada
É a hora de tu vires!
Tu vens (eu sei) na moldura vesperal
com esta luz do passado nas paredes
e este céu de altocúmulos de Dezembro.

Com os estames d'acácia
jogo a vida nas sortes infantis
«Antera cai? Não cai? Ela virá? Não vem?»
E a cada sorte recuso a evidência
«Ela virá? Não vem?»
É a hora de chegares!

3

Os aros dos meus óculos te emolduram
ó Vénus de cabelos desfrizados!
Enquanto as minhas mãos, cegas, procuram
o cofre dos teus seis apertados.

Construímos assim a primavera
- a negada primavera dos amores:
Pega uma flor d'acácia para a pores
no meu cabelo indómito de fera.

Repara e vê a doce realidade:
os nossos jogos simples e ingénuos!
Esta soalheira vespertina hoje é-nos
bela imagem da nossa felicidade.

4

Cigarreio sem sol neste Dezembro.
E um céu da cor da angústia que me dá
a tua ausência em carne e em pensamento.

Magoa-me o teu rosto que não lembro
e o tau vestido branco táfetá
que voava batido pelo vento.

Se esta vida tão clara e simples fosse
como a imagem fixada desse instante
nenhum mal me faria esta chuva precoce.

Chuva, mãe dos poetas, minha amante,
lava às acácias o sanguíneo canto,
cala a voz das cigarras e o meu pranto!

Nas águas do tempo

Mia Couto (Moçambique)


Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.

- Mas vocês vão aonde?

Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.

- Voltamos antes de um agorinha, respondia.

Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver.

Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha, E eu lhe imitava.

- Sempre em favor da água, nunca esqueça!

Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem.

Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Aquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens.
Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecia-mos perfeitos.

De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por pinte, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.

- Você não vê lá, na margem? por trás do cacimbo?

Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.

- Não é lá. É lááá. Não vê o pano branco, a dançar-se?

Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde.
Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra.

Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus não-propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:

- Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte...

O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.

Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra não-firme.

- Nunca! Nunca faça isso!

O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou:

- Neste lugar não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.

Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chão para assentar o pé. Sucedeu-me então que não encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitação, o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa. De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça.

- Cumprimenta também, você!

Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu:

- Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?

Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos.

- Me entende?

Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, bem o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:

- Fique aqui!

E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões.

Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando vislumbrar os brancos panos da outra margem.

Há palavras que nos beijam

Alexandre O'Neill (Portugal)


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

A Chuva... Intimista

A chuva...

Intimista por natureza.

Lá fora a chuva cai de mansinho, dando e permitindo uma sensação de conforto.

Qual gata, enroscada junto da lareira.
Na mesa, uma chávena de chá.
A lenha crepita, o fogo espalha-se no ar - laranja, encarnado, amarelo.

O cheiro inunda de madeira o olfato.
Uma manta... enrolada.
Um livro, lido - a meio.
Um semblante satisfeito.

A chuva cai, e com ela leva as tormentas, e deixa no seu lugar a satisfação.
É hora de recolhimento, de conforto e intimidade.
Hora de conversa à lareira, à volta da lareira.

Chegam ecos distantes da meninice; o Avô, figura temporal, na sua sabedoria dos seus provectos anos, traz ao colo uma criança. Conta-lhe estórias de outros tempos, e sossega-lhe as "feridas", qual ungento para o Coração.

A chuva caí, e com ela leva as constingências, as mágoas, as desilusões, e no seu lugar deixa o conforto e a intimidade de uma lareira.

Apologia de Sócrates
Platão


(É longo, mas vale a pena)


Primeira Parte - Sócrates apresenta a sua defesa

I
O que vós, cidadãos atenienses, haveis sentido, com o manejo dos meus acusadores, não sei; certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de mim mesmo, tão persuasivamente falavam. Contudo, não disseram, eu o afirmo, nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como homem hábil no falar.
Mas, então, não se envergonham disto, de que logo seriam desmentidos por mim, com fatos, quando eu me apresentasse diante de vós, de nenhum modo hábil orador? Essa me parece a sua maior imprudência, se, todavia, não denominam "hábil no falar" aquele que diz a verdade. Porque, se dizem exatamente isso, poderei confessar que sou orador, não porém à sua maneira.

Assim, pois, como acabei de dizer, pouco ou absolutamente nada disseram de verdade; mas, ao contrário, eu vo-la direi em toda a sua plenitude. Contudo, por Zeus, não ouvireis, por certo, cidadão atenienses, discursos enfeitados de locuções e de palavras, ou adornados como os deles, mas coisas ditas simplesmente com as palavras que me vieram à boca; pois estou certo de que é justo o que eu digo, e nenhum de vós espera outra coisa. Em verdade, nem conviria que eu, nesta idade, me apresentasse diante de vós, ó cidadãos, como um jovenzinho que estuda os seus discursos. E todavia, cidadãos atenienses, isso vos peço, vos suplico: se sentirdes que me defendo com os mesmos discursos com os quais costumo falas nas feiras, perto dos bancos, onde muitos de vós tendes ouvido, e em outros lugares, não vos espanteis por isso, nem provoqueis clamor. Porquanto, há o seguinte: é a primeira vez que me apresento diante de um tribunal, na idade de mais de setenta anos: por isso, sou quase estranho ao modo de falar aqui. Se eu fosse realmente um forasteiro, seu dúvida, perdoaríeis, se eu falasse na língua e maneira pelas quais tivesse sido educado; assim também agora vos peço uma coisa que me parece justa: permiti-me, em primeiro lugar, o meu modo de falar - e poderá ser pior ou mesmo melhor - depois, considerai o seguinte, e só prestai atenção a isso: se o que digo é justo ou não: essa, de fato, é a virtude do juiz, do orador - dizer a verdade.

II
É justo, pois, cidadão atenienses, que em primeiro lugar, eu me defenda das primeiras e falsas acusações que me foram apresentadas, e dos primeiros acusadores; depois, me defenderei das últimas e dos últimos. Porque muitos dos meus acusadores tem vindo até vós já bastante tempo, talvez anos, e sem jamais dizerem a verdade; e esses eu temo mais do que Anito e seus companheiros, embora também sejam temíveis os últimos. Mais temíveis porém são os primeiros, ó cidadãos, os quais tomando a maior parte de vós, desde crianças, vos persuadiam e me acusavam falsamente, dizendo-vos que há um tal Sócrates, homem douto, especulador das cosias celestes e investigador das subterrâneas e que torna mais forte a razão mais fraca. Esses, cidadãos atenienses, que divulgaram tais coisas, são os acusadores que eu temo; pois aqueles que os escutam julgam que os investigadores de tais coisas não acreditam nem mesmo nos deuses. Pois esses acusadores são muito e me acusam já há bastante tempo; e, além disso, vos falavam naquela idade em que mais facilmente podíeis dar crédito, quando éreis crianças e alguns de vós muito jovens, acusando-me com pertinaz tenacidade, sem que ninguém me defendesse. E o que é mais absurdo é que não se pode saber nem dizer os seus nomes, exceto, talvez, algum comediógrafo.
Por isso, quantos, por inveja ou calúnia, vos persuadiam, e os que, convencidos, procuravam persuadir os outros, são todos, por assim dizer, inabordáveis; porque não é possível fazê-los comparecer aqui, nem refutar nenhum deles, mas devo eu mesmo me defender, quase combatendo com sombras e destruir, sem que ninguém responda.

Admiti, também vós, como eu digo, que os meus acusadores são de duas espécies, uns, que me acusaram recentemente, outros, há muito dos quais estou falando e convinde que devo me defender primeiramente destes, porque também vós os ouviste acusar-me em primeiro lugar e durante muito mais tempo que os últimos.

Ora bem, cidadãos atenienses, devo defender-me e empreender remover de vossa mente, em tão breve hora, a má opinião acolhida por vós durante muito tempo.

Certo eu desejaria consegui-lo, e seria o melhor, para vós e para mim, se, defendendo-me, obtivesse algum proveito; mas vejo a coisa difícil, e bem percebo por quê. De resto, seja como deus quiser: agora é preciso obedecer à lei e em defender.

III
Prossigamos, pois, e vejamos, de início, qual é a acusação, de onde nasce a calúnia contra mim, baseado no qual Meleto me moveu este processo.
Ora bem, que diziam os caluniadores ao caluniar-me? É necessário ler a ata da acusação jurada por esses tais acusadores: - Sócrates comete crime e perde a sua obra, investigando as coisas terrenas e as celestes, e tornando mais forte a razão mais débil, e ensinando isso aos outros. - Tal é , mais ou menos, a acusação: e isso já vistes, vós mesmos, na comédia de Aristófanes, onde aparece, aqui e ali, um Sócrates que diz caminhar pelos ares e exibe muitas outras tolices, das quais não entendo nem muito, nem pouco.

E não digo isso por desprezar tal ciência, se é que há sapiência nela, mas o fato é, cidadão atenienses, que, de maneira alguma, me ocupo de semelhantes coisas. E apresento testemunhas: vós mesmos, e peço vos informei reciprocamente, mutuamente vos interrogueis, quantos de vós me ouviram discursar algum dia; e muitos dentre vós são desses. Perguntai-vos uns aos outros se qualquer de vós jamais me ouviu orar, muito ou pouco, em torno de tais assuntos, e então reconhecereis que tais são. do mesmo modo, as outras mentiras que dizem de mim.

IV
Na realidade, nada disso é verdadeiro, e , se tendes ouvido de alguém que instruo e ganho dinheiro com isso, não é verdade. Embora, em realidade, isso me pareça bela coisa: que alguém seja capaz de instruir os homens, como Górgias Leontino, Pródico de Coo, e Hípias de Élide. Porquanto, cada um desses, ó cidadãos, passando de cidade em cidade, é capaz de persuadir os jovens, os quais poderiam conversar gratuitamente com todos os cidadãos que quisessem; é capaz de persuadir a estar com eles, deixando as outras conversações, compensado-os com dinheiro e proporcionando-lhes prazer.
Mas aqui há outro erudito de Paros, o qual eu soube que veio para junto de nós, porque encontrei por acaso um que despendeu com os sofistas mais dinheiro que todos os outros juntos, Cálias de Hipônico. tem dois filhos e eu o interroguei: - Cálias, se os teus filhinhos fossem poldrinhos ou bezerros, deveríamos escolher e pagar para eles um guardião, o qual os deveria aperfeiçoar nas suas qualidades inerentes: seria uma pessoa que entendesse de cavalos e de agricultura. Mas, como são homens, qual é o mestre que deves tomar para eles? Qual é o que sabe ensinar tais virtudes, a humana e a civil? Creio bem que tens pensador nisso uma vez que tem dois filhos. Haverá alguém ou não ? - Certamente! - responde. E eu pergunto: - Quem é, de onde e por quanto ensina? Eveno, respondeu, de Paros, por cinco minas. - E eu acreditaria Eveno muito feliz, se verdadeiramente possui essa arte e a ensina com tal garbo. Mas o que é certo é que também eu me sentiria altivo e orgulhoso, se soubesse tais coisas; entretanto, o fato é, cidadãos atenienses, que não sei.

V
Algum de vós, aqui, poderia talvez se opor a mim: - Mas Sócrates, que é que fazes? De onde nasceram tais calunias? Se não tivesses te ocupado em coisa alguma diversa das coisas que fazem os outros, na verdade não terias ganho tal fama e não teriam nascido acusações. Dizes, pois, o que é isso, a fim de que não julguem a esmo.
Quem diz assim, parece-me que fala justamente, e eu procurarei demonstrar-vos que jamais foi essa a causa produtora de tal fama e de tal calúnia. Ouvi-me. Talvez possa parecer a algum de vós que eu esteja gracejando; entretanto, sabei-o bem, eu vos direi toda a verdade. Porque eu, cidadãos atenienses, se conquistei esse nome, foi por alguma sabedoria. Que sabedoria é essa? Aquela que é, talvez propriamente, a sabedoria humana. É, em realidade, arriscado ser sábio nela: mas aqueles de quem falávamos ainda há pouco seriam sábios de uma sabedoria mais que humana, ou não sei que dizer, porque certo não a conheço. Não façais rumor, cidadãos atenienses, não fiqueis contra mim, ainda que vos pareça que eu diga qualquer coisa absurda: pois que não é meu o discurso que estou por dizer, mas refiro-me a outro que é digno de vossa confiança. Apresento-vos, de fato, o deus de Delfos como testemunha de minha sabedoria, se eu a tivesse, e qualquer que fosse. Conheceis bem Xenofonte. Era meu amigo desde jovem, também amigo do vosso partido democrático, e participou de vosso exílio e convosco repatriou-se. E sabeis também como era Xenofonte, veemente em tudo aquilo que empreendesse. Uma vez, de fato, indo a Delfos, ousou interrogar o oráculo a respeito disso e - não façais rumor, por isso que digo - perguntou-lhe, pois, se havia alguém mais sábio que eu. Ora, a pitonisa respondeu que não havia ninguém mais sábio. E a testemunha disso é seu irmão, que aqui está.

VI
Considerai bem a razão por que digo isso: estou para demonstra-vos de onde nasceu a calúnia. Em verdade, ouvindo isso, pensei: que queria dizer o deus e qual é o sentido de suas palavras obscuras? Sei bem que não sou sábio, nem muito nem pouco: o que quer dizer, pois, afirmando que sou o mais sábio? Certo não mente, não é possível. E fiquei por muito tempo em dúvida sobre o que pudesse dizer; depois de grande fadiga resolvi buscar a significação do seguinte modo: Fui a um daqueles detentores da sabedoria, com a intenção de refutar, por meio dele, sem dúvida, o oráculo, e, com tais provas, opor-lhe a minha resposta: Este é mais sábio que eu, enquanto tu dizias que eu sou o mais sábio. Examinando esse tal: - não importa o nome, mas era, cidadãos atenienses, um dos políticos, este de quem eu experimentava essa impressão. - e falando com ele, afigurou-se-me que esse homem parecia sábio a muitos outros e principalmente a si mesmo, mas não era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia sábio sem o ser. Daí me veio o ódio dele e de muitos dos presentes. Então, pus-me a considerar, de mim para mim, que eu sou mais sábio do que esse homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não si nada, também estou certo de não saber. Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja pouca coisa: não acrediito saber aquilo que não sei. Depois desse, fui a outro daqueles que possuem ainda mais sabedoria que esse, e me pareceu que todos são a mesma coisa. Daí veio o ódio também deste e de muitos outros.
VI
Depois prossegui se mais me deter. embora vendo, amargurado e temeroso, que estava incorrendo em ódio; mas também me parecia dever fazer mais caso da resposta do deus. Para procurar, pois o que queria dizer o oráculo, eu devia ir a todos aqueles que diziam saber qualquer coisa. E então, cidadãos atenienses, já que é preciso dizer a verdade, me aconteceu o seguinte: procurando segundo o dedo do deus, pareceu-me que os mais estimados eram quase privados do melhor, e que, ao contrário, os outros, reputados ineptos, eram homens mais capazes, quando à sabedoria.
Ora, é preciso que eu vos descreva os meus passos, como de quem se cansava para que o oráculo se tornasse acessível a mim. Depois dos políticos, fui aos poetas trágicos, e, dos ditirâmbicos fui aos outros, convencido de que, entre esses, eu seria de fato apanhado como mais ignorante do que eles. Tomando, pois, os seus poemas, dentre os que me pareciam os mais bem feitos, eu lhes perguntava o que queriam dizer, para aprender também alguma coisa com eles.

Agora, ó cidadãos, eu me envergonho de vos dizer a verdade; mas também devo manifestá-la. Pois que estou para afirmar que todos os presentes teriam discorrido sobre tais versos quase melhor do que aqueles que os haviam feito.

Em poucas palavras direi ainda, em relação aos trágicos, que não faziam por sabedoria aquilo que faziam, mas por certa natural inclinação, e intuição, assim como os adivinhos e os vates; e em verdade, embora digam muitas e belas coisas, não sabem nada daquilo que dizem. O mesmo me parece acontecer com os outros poetas; e também me recordo de que eles, por causa das suas poesias, acreditavam-se homens sapientíssimos ainda em outras coisas, nas quais não eram. Por essa razão, pois, andei pensando que, nisso eu os superava, pela mesma razão que superava os políticos.

VIII
Por fim, também fui aos artífices, porque estava persuadido de que por assim dizer nada sabiam, e, ao contrário, tenho que dizer que os achei instruídos em muitas e belas coisas. Em verdade, nisso me enganei: eles, de fato. sabiam aquilo que eu não sabia e eram muito mais sábios do que eu. Mas, cidadãos atenienses, parece-me que também os artífices tinham o mesmo defeito dos poetas: pelo fato de exercitar bem a própria arte, cada um pretendia ser sapientíssimo também nas outras coisas de maior importância, e esse erro obscurecia o seu saber.
Assim, eu ia interrogando a mim mesmo, a respeito do que disse o oráculo, se devia mesmo permanecer como sou, nem sábio da sua sabedoria, nem ignorante da sua ignorância, ou ter ambas as coisas, como eles o tem.

Em verdade, respondo a mim e ao oráculo que me convém ficar como sou.

IX
Ora, dessa investigação, cidadãos atenienses, me vieram muitas inimizades e tão odiosas e graves que delas se derivaram outras tantas calúnias e me foi atribuída a qualidade de sábio; pois que, a cada instante, os presentes acreditam que eu seja sábio naquilo que refuto os outros. Do contrário, ó cidadãos, o deus é que poderia ser sábio de verdade, ao dizer, no oráculo, que a sabedoria humana é de pouco ou nenhum preço; e parece que não tenha querido dizer isso de Sócrates, mas que se tenha servido do meu nome, tomando-me por exemplo, como se dissesse: Aqueles dentre vós, ó homens, são sapientíssimos os que, como Sócrates, tenham reconhecido que em realidade não tem nenhum mérito quanto à sabedoria.
Por isso, ainda agora procuro e investigo segundo a vontade do deus, se algum dos cidadãos e dos forasteiros me parece sábio; e quando não, indo em auxílio do deus, demonstro-lhe que não é sábio. E, ocupado em tal investigação, não tenho tido tempo de fazer nada de nada de apreciável, nem nos negócios públicos, nem nos privados, mas encontro-me em extrema pobreza, por causa do serviço do deus.

Além disso, os jovens ociosos, os filhos dos ricos, seguindo-me espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens, e muitas vezes me imitam, por sua própria conta, e empreendem examinar os outros; e então, encontram grande quantidade daqueles que acreditam saber alguma coisa, mas, pouco ou nada sabem. Daí, aqueles que são examinados por eles encolerizam-se comigo assim como com eles, e dizem que há um tal Sócrates, perfidíssimo, que corrompe os jovens. E quando alguém os pergunta o que é que ele faz e ensina, não tem nada o que dizer, pois ignoram. Para não parecerem embaraçados, dizem aquela acusação comum, a qual é movida a todos os filósofos: que ensina as coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos deuses, e a tornar mais forte a razão mais débil. Sim, porque não querem, ao meu ver, dizer a verdade, isto é, que descobriram a presunção de seu saber, quando não sabem nada. Assim, penso, sendo eles ambiciosos e resolutos e em grande número, e falando de mim concordemente e persuasivamente, vos encheram os ouvidos caluniando-me de há muito tempo e com persistência. Entre esses, arremessaram-se contra mim Meleto, Anito e Licon: Meleto pelos poetas, Anito pelos artífices, Licon pelo oradores. De modo que, como eu dizia no princípio, ficaria maravilhado se conseguisse, em tão breve tempo, tirar do vosso ânimo a força dessa calúnia, tornada tão grande.

Eis a verdade, cidadãos atenienses, e eu falo sem esconder nem dissimular nada de grande ou de pequeno.

Saibam, quantos o queiram, que por isso sou odiado; e que digo a verdade, e que tal é a calúnia contra mim e tais são as causas. E tanto agora como mais tarde ou em qualquer tempo, podereis considerar essas coisas: são como digo.

X
É suficiente, pois. esta minha defesa diante de vós, contra a acusação movida a mim pelos primeiros acusadores. Agora procurarei defender-me de Meleto, homem de bem e amante da pátria, como dizem, e um dos últimos acusadores.
Voltemos, portanto, ao ato de acusação, jurado por ele, como por outros acusadores. É mais ou menos assim:

- Sócrates - diz a acusação - comete crime corrompendo os jovens e não considerando como deuses os deuses que a cidade considera, porém outras divindades novas.- Esta é a acusação. Examinemo-la agora, em todos os seus vários pontos. Diz, primeiro, que cometo crime, corrompendo jovens. Ao contrário, eu digo, cidadãos atenienses, Meleto é quem comete crime, porque brinca com as coisas graves. Conduzindo com facilidade os homens ao tribunal, aparentando ter cuidado e interesse por coisas em que de fato nunca pensou. Procurarei mostrar-vos que é bem assim.

XI
- Agora, dize-me, Meleto: não é verdade que te importa bastante que os jovens se tornem cada vez melhores, tanto quanto possível?
- Sim, é certo.

- Vamos, pois, dize-lhes quem os torna melhores; é claro que tu o deves saber, sendo coisa que te preocupa, tendo de fato encontrado quem os corrompe, como afirmas, uma vez que me trouxeste aqui e me acusa. Continua, fala e indica-lhes quem os torna melhores. Vê, Meleto, calas e não sabes o que dizer. E, ao contrário não te parece vergonhoso e suficiente prova do que justamente eu digo, que nunca pensaste em nada disso? Mas, dizes, homem, de bem, quem os torna melhores?

- As leis.

- Mas não pergunto isso, ótimo homem, mas qual o homem que sabe, em primeiro lugar, isso exatamente, as leis.

- Aqueles, Sócrates, os juízes.

- Como, Meleto, esses são capazes de educar os jovens e os tornar melhores?

- Como não?

-Todos, ou alguns apenas, outros não?

- Todos.

- Muito bem respondido, por Hera: Vê quanta abundância de pessoas úteis! Como ? Também estes, que nos escutam, tornam melhores os jovens ou não?

- Também estes.

-E os senadores?

-Também os senadores.

- É assim, Meleto. Não corrompem os jovens os cidadãos da Assembléia, ou também todos esses os tornam melhores?

- Também esses.

-Assim, pois, todos os homens, como parece, tornam melhores os jovens, exceto eu. Só eu corrompo os jovens. Não é isso?

- Isso exatamente afirmo de modo conciso.

- Oh! Que grande desgraça descobriste em mim! E responde-me: será assim também para os cavalos? que aqueles que os tonam melhores são todos homens e que só um os corrompe? ou será o contrário, que um só é capaz de os tornar melhores, e bem poucos aqueles que entendem de cavalos; e os mais, quando querem manejá-los e usá-los, os estragam? Não é assim, Meleto, para os cavalos como para todos os animais? Sim, certamente, ainda que tu e Anito o neguem ou afirmem. Pois seria uma grande fortuna para os jovens que um só corrompesse e os outros lhe fossem todos úteis. Mas, na realidade, Meleto, mostraste o suficiente que jamais te preocupaste com os jovens, e claramente revelaste o teu desmazelo, que nenhum pensamento te passou pela mente, disto que me acusas.

XII
- E , agora, dize-me, por Zeus, Meleto: que é melhor, viver entre virtuosos cidadãos ou entre malvados? Responde, meu caro, não te pergunto uma coisa difícil. Não fazem os malvados alguma maldade aos que são seus vizinhos, e alguns benefícios os bons?
- Certamente.

- E haverá quem prefira receber malefícios a ser auxiliado opor aqueles que estão com ele? Responde, porque também a lei manda responder. Há os que gostam de ser prejudicados.

-Não, por certo.

-Vamos, pois, tu me acusas como pessoa que corrompe os jovens e os torna piores, voluntariamente ou involuntariamente?

- Para mim, voluntariamente.

- Como, Meleto? Tu, nesta idade, és mais sábio do que eu, tão velho, sabendo que os maus fazem sempre mal aos mais próximos e os bons fazem bem: eu, pois, cheguei a tal grau de ignorância que não si nem isso, que se tornasse maus alguns daqueles que estavam comigo, correria o risco de receber dano, se é que faço um tão grande mau, como dizes. Não te creio, Meleto, quanto a isso, e ninguém te acredita, penso.

Mas. ou não os corrompo, ou, se os corrompo, é involuntariamente, e em ambos os casos mentiste. E, se os corrompo involuntariamente, não há leis que mandem trazer aqui alguém, por tais fatos involuntários, mas há as que mandam conduzi-lo em particular, instruindo-o, advertindo-o; é claro que se me convencer, cessarei de fazer o que estava fazendo sem querer. Tu. ao contrário, evitaste encontrar-me e instruir-me, não o quiseste; e me conduzes aqui, onde a lei ordena citar aqueles que tem necessidade de pena e não de instrução.

XIII
Mas, cidadãos atenienses, os fatos evidenciaram o que eu sempre disse. Jamais Meleto prestou atenção a tais coisas, nem muita, nem pouca. Todavia, explica, Meleto, o que significa a tua expressão, dizendo corrompo os jovens. É claro, segundo a acusação escrita por ti mesmo, que ensino a não respeitar os deuses que a cidade respeita, porém, outras divindades novas. Não dizes que os corrompo, ensinando tais coisas?
-Sim, é isso mesmo que eu digo, sempre que posso.

- Assim, pois, Meleto, por estes mesmos deuses, de que agora está falando, fala ainda mais claro, a mim e aos outros. Não consigo entender se dizes que eu ensino a creditar que existem certos deuses - e em verdade creio que existem deuses, e não sou de todo ateu, nem sou culpado de tal erro - mas não são os da cidade, porém outros, e disso exatamente me acusas, dizendo que eu creio em outros deuses. Ou dizes que eu mesmo não creio inteiramente nos deuses e que ensino isso aos outros?

- Eu digo isso, que não acreditas inteiramente nos deuses.

- Admirável Meleto, a quem disse eu isso? Não creio, pois, do mesmo modo que os outros homens, que o sol e a lua são deuses?

-Não, por Zeus, ó juízes: ele disse de fato que o sol é uma pedra, e a lua, terra.

- Tu acreditas acusar Anáxagoras, caro Meleto; e me desprezas tanto e me consideras tão privado de letras a ponto de não saber que os livros de Anáxagoras Clazomênio estão cheios de tais raciocínios? De modo que os jovens aprendem coisas de mim, pelas quais podem talvez, pagando todos no máximo uma dracma, rir-se de Sócrates, quando se lhe atribui arrogância, embora isso pareça estranho. Mas, por Zeus, assim te parece, que eu creio que não exista nenhum deus?

-Nenhum, por Zeus, nenhum mesmo.

- És de certo, indigno de fé, Meleto, e também a ti mesmo, me parece, tais coisas são inacreditáveis. Porque este homem, cidadãos atenienses, me parece a própria arrogância e imprudência, e certamente escreveu essa acusação por medo, intemperança e leviandade juvenil. De fato ele, para mim, se assemelha a alguém que proponha um enigma e diga, interrogando-se a si mesmo: Perceberá Sócrates, o sábio, que eu estou zombando dele e me contradigo, ou conseguirei enganá-lo e aos outros que me ouvem? E, ao contrário, me parece que, no ato da acusação, se contradiz de propósito, como se dissesse: Sócrates comete crime, não acreditando nos deuses, mas acreditando nos deuses. E isso, na verdade é fazer zombaria.]

XIV
- Considerai, pois, comigo, ó cidadãos, de que modo me parece que ele diz isso. Responde-nos tu, Meleto, e vós, como pedi a princípio, não façais rumor contra mim, se conduzo o raciocínio desse modo. Existem entre os homens, Meleto, os que acreditam que há coisas humanas, que não há homens? Que responda ele, ó juízes, sem resmungar ora uma coisa ora outra. Há os que acreditam que não há cavalos, e coisas que tenham relação com os cavalos sim? Ou acreditam que não há flautistas, e coisas relativas à flauta sim? Não há? Ótimo homem, se não queres responder, digo-o eu, aqui, a ti e aos outros presentes. Mas, ao menos, responde a isto: Há quem acredite que há coisas demoníacas, e demônios não?
- Não há.

-Oh! como estou contente que tenhas respondido de má vontade, constrangido por outros! Tu dizes. pois, que eu creio e ensino coisas demoníacas, sejam novas, sejam velhas; portanto, segundo o teu raciocínio, eu creio que há coisas demoníacas e o juraste na tua acusação. Ora, se creio que há coisas demoníacas, certo é absolutamente necessário que eu creia também na existência dos demônios. Não é assim? Assim é: estou certo de que o admites, porque não respondes. E não temo em apreço os demônios como deuses ou filho de deuses? Sim, ou não?

- Sim, é certo.

- Se, pois, creio na existência dos demônios, como dizes, se os demônios são uma espécie de deuses, isso seria propor que não acredito nos deuses, e depois, que, ao contrário, creio nos deuses, porque ao menos creio na existência dos demônios. Se, por outra parte, os demônios são filhos bastardos dos deuses com as ninfas, ou outras mulheres, das quais somente se dizem nascidos, quem jamais poderia ter a certeza de que são filhos dos deuses se não existem deuses? Seria de fato do mesmo modo absurdo que alguém acreditasse nas mulas, filas de cavalos e das jumentas, e acreditassem não existirem cavalos e asnos. Mas, Meleto, tua acusação foi feita para me pôr à prova, ou também por não saber a verdadeira culpa que me pudesses atribuir: por que, pois, te arriscas a persuadir um homem, mesmo de mente restrita, de que pode a mesma pessoa acreditar na existência das coisas demoníacas e divinas, e, de outro lado, essa pessoa não admitir demônios, nem deuses, nem heróis? Isso não é possível.

XV
Em realidade, cidadãos atenienses, para demonstrar que não sou réu, segundo a acusação de Meleto, não me parece ser necessária longa defesa, mas isso basta. Aquilo, pois, que eu dizia no princípio, que há muito ódio contra mim, e muito acumulado, bem sabeis que é verdade. E isso é o que me vai perder, se eu me perder ... e não Meleto, ou Anito, mas, a calúnia e a insídia do povo: pela mesma razão se perderam muitos outros homens virtuosos, e outros ainda, creio, serão perdidos; não há perigo que a série se feche comigo. Mas talvez pudesse alguém dizer: Não te envergonhas, Sócrates, de te aplicardes a tais ocupações, pelas quais agora está arriscado a morrer? A isso, porei justo raciocínio, e é o seguinte: não estás falando bem, meu caro, se acreditas que um homem, de qualquer utilidade, por menor que seja, deve fazer caso dos riscos de viver ou morrer, e , ao contrário, só deve considerar uma coisa: quando fizer o que quer que seja, deve considerar se faz coisa justa ou injusta, se está agindo como homem virtuoso ou desonesto. Porquanto, segundo a tua opinião, seriam desprezíveis todos aqueles semideuses que morreram em Tróia. E, com eles, o filho de Tétis, o qual, para não sobreviver à vergonha, desprezou de tal modo o perigo que, desejoso de matar Heitor, não deu ouvido à predição de sua mãe, que era uma deusa, e a qual lhe deve ter dito mais ou menos isto: -Filho, se vingares a morte de teu amigo Pátroclo e matares Heitor, tu mesmo morrerás, porque, imediatamente depois de Heitor, o teu destino estará terminado. - Ouviu tais palavras, não fez nenhum caso da morte e dos perigos, e, temendo muito mais o viver ignóbil e não vingar os amigos, disse: Morra eu imediatamente depois de ter punido o culpado, para que não permaneça aqui como objeto de riso, junto das minhas naus recurvas inútil fardo da terra. Crês que tenha feito caso dos perigos e da morte? Porque em verdade assim é, cidadãos atenienses: onde quer que alguém tenha colocado, reputando o melhor posto, ou se for ali colocado pelo comandante, tem necessidade, a meu ver, de ir firme ao encontro dos perigos, sem se importar com a morte ou com coisa alguma, a não ser com as torpezas.
XVI
Gravíssimo erro deveria considerar, cidadãos atenienses, quando os comandantes, por vós eleitos para me dirigirem, me assinalaram um posto em Potidéia, em Anfípolo, em Délio, não ter ficado eu onde me colocaram como qualquer outro e correndo perigo de morte. Quando, pois, o deus me ordenava, como penso e estou convencido, que eu devia viver filosofando e examinando a mim mesmo e aos outros, então eu, se temendo a morte ou qualquer outra coisa, tivesse abandonado o meu posto, isso seria deveram intolerável. Nesse caso, com razão, alguém poderia conduzir-me ao tribunal, e acusar-me de não acreditar na existência dos deuses, desobedecendo ao oráculo, e temendo a morte, e reputando-me sábio sem o ser.
Pois que, ó cidadãos, o temer a morte não é outra coisa que parecer ter sabedoria, não tendo. É de fato parecer saber o que não se sabe. Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos, talvez nisso seja diferente da maior parte dos homens, eu diria isto: não sabendo bastante das coisas do Hades, delas não fugirei. Mas fazer injustiça, desobedecer a quem é melhor e sabe mais do que nós, seja deus, seja homem. isso é que é mal e vergonha. Não temerei nem fugirei das coisas que não sei se, por acaso, são boas ou más. Anito disse que, ou não se devia, desde o princípio, trazer-me aqui, ou, uma vez que me trouxeram não é possível deixarem de me condenar à morte, afirmando que, se eu me salvasse, imediatamente os vossos filhos, seguindo os ensinamentos de Sócrates, estariam de fato corrompidos. Mas, se me absolvêsseis, não cedendo a Anito, se me dissésseis: Sócrates, agora não damos crédito a Anito, mas te absolveremos, contando que não te ocupes mais dessas tais pesquisas e de filosofar, porque, se fores apanhado ainda a fazer isso, morrerás; se, pois, me absolvêsseis sob tal condição, eu vos diria:

- Cidadãos atenienses, eu vos respeito e vos amo, mas obedecerei aos deuses em vez de obedecer a vós, e enquanto eu respirar e estiver na posse de minhas faculdades, não deixarei de filosofar e de vos exortar ou de instruir cada um, quem quer que seja que vier à minha presença, dizendo-lhe, como é meu costume: - Ótimo homem, tu que és cidadão de Atenas, da cidade maior e mais famosa pelo saber e pelo poder, não te envergonhas de fazer caso das riquezas, para guardares quanto mais puderes e da glória e das honrarias, e, depois, não fazer caso e nada te importares de sabedoria, da verdade e da alma, para tê-la cada vez melhor?

E, se algum de vós protestar e prometer cuidar , não o deixarei já, nem irei embora, mas o interrogarei e o examinarei e o convencerei, e, em qualquer momento que pareça que não possui virtude, convencido de que a possuo, o reprovarei, porque faz pouquíssimo caso das coisas de grandíssima importância e grande caso das parvoíces. E isso o farei com quem quer que seja que me apareça, seja jovem ou velho, forasteiro ou cidadão, tanto mais com os cidadãos quanto mais me sejam vizinhos por nascimento.

Isso justamente é o que me manda o deus, e vós o sabeis, e creio que nenhum bem maior tendes na cidade, maior que este meu serviço do deus.

Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a não se preocuparem exclusivamente, e nem tão ardentemente, com o corpo e com as riquezas, como devem preocupar-se com a alma, para que ela seja quanto possível melhor, e vou dizendo que a virtude não nasce da riqueza, mas da virtude vem, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto públicos como privados.

Se, falando assim, eu corrompo os jovens, tais raciocínios são prejudiciais; mas se alguém disser que digo outras coisas que não essas, não diz a verdade. Por isso vos direi, cidadãos atenienses, que secundado Anito ou não, absolvendo-me ou não, não farei outra coisa, nem que tenha de morrer muitas vezes.

XVII
Não façais rumor, cidadãos atenienses, mas perseverai no que vos estou dizendo, isto é, não vocifereis pelas coisas que vos digo, mas ouvi-me; pois escutando-me, penso que tirareis proveito.
Aqui estou para vos dizer algumas outras coisas, e talvez, por isso, levantareis a voz, mas não o deveis fazer. Sabei-o bem: se me condenais a morrer, a mim que sou tal como eu digo, não causareis maior dano a mim que vós mesmos. E, de fato, nem Meleto, nem Anito me poderiam fazer mal em coisa em alguma: isso jamais seria possível, pois que não pode acontecer que um homem melhor receba dano de um pior. É possível que me mandem matar, ou me exilem, ou me tolham os direitos civis; mas provavelmente, eles ou quaisquer outros reputam tais coisas como grandes males, ao passo que eu não considero assim, e, ao contrário considero muito maior mal fazer o que agora eles estão fazendo, procurando matar injustamente um homem.

Ora, pois, cidadãos atenienses, estou bem longe de me defender por amor a mim mesmo, como alguém poderia supor, mas por amor a vós, para que, condenando-me, não tenhais de cometer o erro de repelir o dom de mim que vos fez o deus. Pois que, se me mandares matar, não encontrareis facilmente outro igual, que (pode parecer ridículo dizê-lo) tenha sido adaptado pelo deus à cidade, do mesmo modo com a um cavalo grande e de pura raça, mas um pouco lerdo pela sua gordura, é aplicada a necessária esporada para sacudi-lo. assim justamente me parece que o deus me aplicou à cidade, de maneira que, despertando cada um de vós e persuadindo-vos e desaprovando-vos, não deixo de vos esporar os flancos, por toda a parte, durante todo o dia.

E outro parecido, não tereis tão facilmente, cidadãos. Mas, se me ouvísseis me pouparíeis. É possível que vós irritados como aqueles que são despertados quando no melhor do dono, repelindo-me para condescender com Anito, levianamente me condeneis à morte, para dormirdes o resto da vida, se, entretanto, o deus, pensando em vós, não vos mandar algum outro.

Que eu seja um homem cuja qualidade é a de ser um dom feito pelo deus à cidade podereis deduzir do seguinte: não é, na verdade, do homem, eu ter descuidado das minhas coisas, resignando-me por tantos anos a me descuidar dos negócios domésticos para acudir sempre aos vossos, aproximando-me sempre de cada um de vós em particular como um pai ou irmão mais velho, persuadindo-vos a vos preocupardes com a virtude? Se, em verdade, disto eu obtivesse qualquer coisa e recebesse compensação de tais advertências, teria uma razão. Mas agora vós mesmos vedes que os acusadores, tendo acusado a mim, com tanta imprudência, de tantas outras coisas, não foram capazes de apresentar uma testemunha de que eu tenha contratado ou pedido alguma recompensa.

Pois bem; apresento um testemunho suficiente do que digo: a minha pobreza.

XVIII
Mas, poderia talvez parecer estranho que eu, andando daqui para lá, me cansasse dando em particular esses conselhos, e depois, em público, não ousasse, subindo diante do vosso povo aconselhar a cidade. A causa disso é a que em várias circunstâncias, eu vos disse muitas vezes: a mim me acontece qualquer coisa de divino e demoníaco; isso justamente Meleto escreveu também no ato da acusação, zombando de mim mim. E tal fato começou comigo em criança. Ouço uma voz, e toda vez que isso acontece ela me desvia do que estou a pique de fazer, mas nunca me leva à ação. Ora, é isso que me impede de me ocupar dos negócios do Estado. E até me parece que muito a propósito mo impede, porquanto, sabei-o bem, cidadãos atenienses, se eu, há muito tempo, tivesse empreendido ocupar-me com os negócios do Estado há muito tempo já estaria morto, e não teria sido útil em nada, nem a vós, nem a mim mesmo.
E não vos encolerizeis comigo, porque digo a verdade; não há nenhum homem que se salve, se quer opor-se, com franqueza, a vós ou a qualquer outro povo, e impedir que muitos atos contrários à justiça e às leis se pratique na cidade. E não há outro caminho: quem combate verdadeiramente pelo que é justo, se quer ser salvo por algum tempo, deve viver a vida privada, nunca meter-se nos negócios públicos.

Disso vos poderei dar grandes provas, não palavras, mas o que prezei: fatos. Ouvi, pois, de minha boca, o que me aconteceu, para que não saibais que não há ninguém a quem eu tenha feito concessões com desprezo da justiça e por medo da morte; e que, ao mesmo tempo, por essa recusa de toda concessão deverei morrer. Dir-vos-ei talvez coisas comuns e pedantescas, mas verdadeiras. De fato, cidadãos atenienses, não tenho mais nenhum cargo público na cidade, mas fui senador, e à nossa Antiquóida coube por sorte a Pritânia, quando quisestes que aqueles dez estrategistas, que não haviam recolhidos os mortos e os náufragos da batalha naval, fossem julgados coletivamente, contra a lei, no que todos vós conviestes. Então somente eu, dos pritanos, me opus a vós, não querendo agir em oposição à lei ,e votei contra. E, embora os oradores estivessem prontos a me acusar e me prender, e vós os encorajásseis vociferando, mesmo assim, achei que me convinha mais correr perigo com a lei e com o que era justo, do que, por medo do cárcere e da morte, estar convosco, vós que deliberáveis o injusto.

Isso acontecia quando a cidade era ainda governada pela democracia. Quando veio a oligarquia, os Trinta, novamente tendo-me chamado, em quinto lugar, ao Tolo, ordenaram-me que fosse à Salamina buscar o Leão Salamínio, para que fosse morte. Muitos fatos desse gênero tinham sido ordenados a muitos outros, com o fim de cobrir de infâmia quanto pudessem. Também naquele momento, não com palavras mas com fatos, demonstrei de novo que a morte não me importava, ou me importava menos que um figo, eu diria se não fosse indelicado dizê-lo. Mas não fazer nada de injusto e de ímpio isso sim, me importa acima de tudo. Pois aquele governo, embora tão violento, não me intimidou, para que fizesse alguma injustiça; mas quando saímos de tolo, os outros quatro foram à Salaminas e trouxeram Leão, e eu, ao contrário, afastei-me deles e fui para casa. Naquela ocasião, eu teria sido morto, se o governo não fosse derrubado pouco depois. E disso tendes testemunhas em grande número

XIX
Ora, julgais que eu teria vivido tantos anos, se me tivesse aplicado aos negócios públicos, e procedendo como homem de bem, tivesse defendido as coisas justas, e, como deve ser, tivesse dado a isso maior importância? Muito longe disso, cidadãos atenienses; na verdade, também nenhum outro se teria salvo! Eu, porém, durante toda a minha vida, se fiz alguma coisa, em público ou em particular, vos apareço sempre o mesmo, não tendo jamais concedido coisa alguma contra a justiça nem aos outros nem a algum daqueles que meus caluniadores chamam de meus discípulos.
Mas nunca fui mestre de ninguém: de, pois, alguém mostrou desejoso da minha presença quando eu falava, e acudiam à minha procura jovens e velhos, nunca me recusei a ninguém. Nunca, ao menos, falei de dinheiro; mas igualmente me presto a me interrogar os ricos e os pobres, quando alguém, respondendo, quer ouvir o que digo. e se algum deles se torna melhor, ou não se torna não posso ser responsável, pois que não prometi, nem dei, nesse sentido, nenhum ensinamento. E, se alguém afirmar que aprendeu ou ouviu de mim, em particular, qualquer coisa de diverso do que disse a todos os outros, sabei bem que não diz a verdade.

XX
Entretanto, como pode acontecer que alguns se comprazam em passar muito tempo comigo? Já ouvistes, cidadãos atenienses, eu já vos disse toda a verdade: é porque tomam gosto em ouvir examinar aqueles que acreditam ser sábio e não o são; não é de fato coisa desagradável. E, como disse, foi o deus que me ordenou a fazê-lo, com oráculos, com sonhos, e com outros meios, pelos quais algumas vezes a divina a vontade ordena a um homem que faça o que quer que seja.
Tudo isso, cidadãos atenienses, é verdade e fácil de provar. Com efeito, suponhamos que, entre os jovens, há alguns que estou corrompendo e outros que já corrompi: seria aparentemente inevitável que alguns destes, quando tiveram mais idade, compreendessem que eu lhes tinha alguma vez aconselhado uma ação má - e hoje deveriam estar aqui para me acusar e vingar-se de mim. Suponhamos ainda, que eles não teriam querido vir pessoalmente: mesmo assim, alguns de seus parentes, pais, irmãos ou pessoas de família, se algum dia receberam danos de minha parte, agora deveriam recordar e tirar vingança.

Mas eis que vejo aqui presentes muitos desses: primeiro Críton, meu coevo e do mesmo demos, pai de Critóbulo; depois Lisânias Sfécio, pai de Epígenes, além destes outros cujos irmãos estiveram comigo na intimidade: Nicostrato, filho de Teozóides e irmão de Teodoto (e Teodoto, que já é falecido, não poderia impedir Nicostrato de falar contra mim). E há ainda, Paralo de Demócodo, irmão de Teageto, do qual é irmão Platão, e Aiantádoro, de que é irmão Apolodoro. E muitos outros eu poderia citar, alguns dos quais especialmente deveriam ter sido apresentados por Meleto como testemunhas, no seu discurso. Mas, se agora se esquivam, aos presentes aqui eu lhes permito dizerem se há qualquer coisa dessa natureza. Mas vós, ó juízes, sois de parecer contrário, achareis que todos estão prontos a me ajudar; mas incorruptíveis homens já de idade avançada, parentes daqueles, que razão teriam para me ajudar senão aquela, reta e justa, convencidos de que Meleto mente e que eu digo a verdade?

XXI
Assim seja, ó cidadãos: é mais ou menos isso que eu poderei dizer em minha defesa ou qualquer coisa semelhante. Provavelmente, porém, algum de vós poderá ficar encolerizado, recordando-se de si mesmo. Se sustentou uma contenda embora em menor proporções do que essa minha, pediu e suplicou aos juízes, com muitas lágrimas, trazendo aqui os filhos, e muitos outros parentes e amigos, a fim de mover a piedade ao seu favor. Eu não farei certamente nada disso, embora vá ao encontro, como se pode acreditar, do extremo perigo. É possível que qualquer um, considerando isso, pudesse irritar-se contra mim, e, encolerizado por isso mesmo, desse o voto com ira. Se, de fato, algum de vós está em está em tal estado de alma, a mim me parece que poderei dizer-lhe o seguinte: Também eu, meu caro, tenho uma família, e bem posso, como em Homero, dizer que não nasci: "de um carvalho nem de um rochedo", pois eu também tenho parentes e filhinhos, ó cidadãos atenienses: três, um já jovenzinho e duas meninas; mas contudo, não farei vir aqui nenhum deles para vos rogar a minha absolvição.
Porque razão não farei nada disso? Não é por soberbia, ó atenienses, nem por desprezo que eu tenha por vós, mas que eu seja corajoso ao menos defronte a morte, isto é outra coisa. Tratando-se de honra, não me parece belo, nem para mim nem para vós, pata toda cidade, que eu faça tal, na idade em que estou, e com este nome de sábio que me dão, seja ele merecido ou não. O fato é que me foi criada a fama de ser este Sócrates em quem há alguma coisa pela qual se tona superior à maioria dos homens. Ora, se aqueles que entre nós, tem a reputação de ser superiores aos demais, pela sabedoria, pela coragem, ou por qualquer outro mérito procedessem de tal modo, seria bem feito.

Freqüentemente já notei essa atitude, quando são elas julgadas, em pessoas que, malgrado a reputação de homens de valor que tem, se entregam a extraordinárias manifestações, inspiradas pela idéia de que será coisa terrível ter de morrer: como se, no caso em que vós não o mandásseis à morte, devessem eles ser imortais. São esses homens que, a meu ver, cobrem a cidade de vergonha, e que poderiam suscitar entre os estrangeiros a convicção de aqueles que os próprios atenienses escolheram, de preferência, para serem os seus magistrados e para as demais dignidades, não se diferenciem das mulheres!

É um procedimento, atenienses, que não deverá ser o vosso, quando possuirdes reputação em qualquer gênero de valor que seja; e que não deveis permitir seja o meu, caso eu tenha alguma reputação, pois o que deveis fazer é justamente que se compreenda isto: que aquele que se apresenta no tribunal representando estes dramas lamentáveis será mais certamente condenado por vós do que o que permanece tranqüilo.

XXII
Mas mesmo não fazendo caso da reputação, ó cidadãos, não me parece também justo suplicar aos juízes e evitar a condenação com rogos, mas iluminá-los e persuadi-los. Que o juiz não ceda já por isso, não dispense sentença a favor, mas a pronuncie retamente e jure condescender com quem lhe agrada, mas proceder segundo as leis. Por isso, nem nós devemos habituar-vos a proceder contra o vosso juramento, nem vós deveis permitir que nos habituemos a fazê-lo.
Não espereis, cidadãos atenienses, que eu seja constrangido a fazer, diante de vós, coisas tais que não considero nem belas, nem justas, nem santas, especialmente agora, por Zeus, que sou acusado de impiedade por Meleto.

É evidente que, se com todo vosso juramento, eu vos persuadisse e com palavras vos forçasse, eu vos ensinaria a considerar que não existem deuses, e assim, enquanto me defendo, em realidade me acusaria, só pelo fato de não crer nos deuses.

Mas a coisa está bem longe de ser assim; porquanto, cidadãos atenienses, creio neles, como nenhum dos meus acusadores, e encarrego a vós e ao deus de julgar a mim, do modo que puder ser o melhor para mim e para vós.





Segunda Parte - Sócrates é condenado e sugere sua sentença

XXIII
A minha impassibilidade, cidadãos atenienses. diante da minha condenação, entre muitas razões, deriva também desta: eu contava com isto, e até, antes me espanto do número dos dois partidos. Por mim, não acreditava que a diferença fosse assim de tão poucos, mas de muitos, pois, se somente trinta fossem da outra parte, eu estaria salvo (nota: dos 501 juízes, 280 a favor e 220 contra).
De Meleto, ao contrário, estou livre, me parece ainda, e isso é evidente a todos: se Anito e Licon não viessem aqui acusar-me Meleto teria sido multado em mil dracmas, não tendo obtido o quinto dos votos.

XXIV
Eles pedem, pois, para mim, a pena de morte. Pois bem, atenienses, que contraproposta vos farei eu? A que mereço, não é assim? Qual, pois? Que pena ou multa mereço eu, que em toda a vida não repousei um momento, mas descuidando daquilo que todos tem em grande conta, a aquisição de riquezas e a administração doméstica, e os comandos militares, e as altas magistraturas, e as conspirações, e os partidos que surgem na cidade, conservei-me na realidade de ânimo bastante brando para que pudesse, fugindo de tais intrigas, me livrar delas, não indo aonde a minha presença não fosse de nenhuma vantagem nem para vós nem para mim mesmo? Voltava-me, ao contrário, para os lados aonde eu poderia levar, a cada um em particular, os maiores benefícios, procurando persuadir cada um de vós a não se preocupar demasiadamente com suas próprias coisas, antes que de si mesmo, para se tornar quanto mais honesto fosse possível; a não cuidar dos negócios da cidade antes que da própria cidade, e preocupar-se, assim, do mesmo modo, com outras coisas. De que sou digno eu, tendo sido assim procedido? De um bem, cidadãos atenienses, se devo fazer uma proposta conforme o mérito; e um bem tal que me possa convir. E, que convém a um pobre benemérito que tem necessidade de estar em paz, para vos exortar ao caminho reto? Não há coisa que melhor convenha, cidadãos atenienses, que nutrir um tal homem a expensas do estado, no Pritaneu; merece-o bem mais que um de vós que tenha sido vencedor nos Jogos olímpicos, na corrida de cavalos, de bigas ou quadrigas! Esse homem, porém, faça com que o sejais; ele, homem rico, não tem necessidade de que se cuide de sua subsistência, mas eu tenho necessidade. Portanto, se devo fazer uma proposta segundo a justiça, eis o que indico para mim: ser, a expensas do Estado, nutrido no Pritaneu.
XXV
Ao contrário, talvez vos pareça que eu, ainda falando disso, o faça com arrogância, pouco mais ou menos como quando falava da consideração e dos rogos; mas não é assim, cidadãos atenienses, antes é deste modo: estou persuadido de que não ofendo ninguém por minha vontade, mas não vos posso persuadir também disto, porque o tempo em que estamos raciocinando juntos é brevíssimo; e eu creio que, se as vossas leis, como as de outros povos, não decidissem um juízo capital em um dia, mas em muitos, vos persuadiria: ora, não é fácil, em pouco tempo, destruir grandes calúnias.
Estando, pois, convencido de não ter feito injustiça a ninguém, estou bem longe de fazê-la, a mim mesmo e dizer em meu dano ,que mereço um mal, e me assinalar um de tal sorte. Que devo temer? É possível que eu não tenha de sofrer a pena que me assinala Meleto e que eu digo ignorar se será um bem ou mal? E, ao contrário disso, deverei escolher uma daquelas que sei bem ser um mal, e propor-me essa pena? O cárcere? E por que devo viver no cárcere, escravo do magistrado que o preside, escravo dos Onze. Ou uma multa, ficando amarrado, quanto não acabe de paga-la? Seria, pois, o exílio que deveria propor como pena para mim? É possível que vós me indiquei essa pena. Ah! eu teria verdadeiramente um amor excessivo à vida se fosse irrefletido ao ponto de não ser capaz de refletir nisso: vós que sois meus concidadãos acabastes por não achar meios de suportar meus sermões; estes se tornaram para vós um fardo bastante pesado e detestável para que procurei hoje livrar-vos, serão os meus sermões mais fáceis de suportar para os outros? Muito longe disso, atenienses!

Bela vida, em verdade, seria a minha, nesta idade, viver fora da pátria, passando de uma cidade a outra, expulso em degredo.

Sei bem que onde quer que eu vá, os jovens ouvirão os meus discursos como aqui: se eu os repelir, eles mesmos me mandarão embora, convencendo os velhos a fazê-lo; e se não os repelir, os seus pais e parentes me mandarão embora igualmente, com qualquer pretexto.

XXVI
Ora, é possível que alguém pergunte: - Sócrates, não poderias tu viver longe da pária, calado e em paz? Eis justamente o que é mais difícil fazer aceitar a alguns dentre vós: se digo que seria desobedecer ao deus e que, por essa razão, eu não poderia ficar tranqüilo, não me acreditaríeis, supondo que tal afirmação é, de minha parte, uma fingida candura. Se, ao contrário, digo que o maior bem para um homem é justamente este, falar todos os dias sobre a virtude e os outros argumentos sobre os quais me ouvistes raciocinar, examinando a mim mesmo e aos outros, e, que uma vida sem esse exame não é digna de ser vivida, ainda menos me acreditaríeis, ouvindo-me dizer tais coisas. Entretanto, é assim, como digo, ó cidadãos, mas não é fácil torná-lo persuasivo.
E, por outro lado, não estou habituado a acreditar-me digno de nenhum mal. De fato, se tivesse dinheiro, me multaria em uma soma que pudesse pagar, porque não teria prejuízo algum; mas o fato é que não tenho. Só se quiserdes multar-me em tanto quanto eu possa pagar. Talvez eu vos pudesse pagar uma mina de prata; multo-me, pois em tanto. Mas Platão, cidadãos atenienses, Críton, Cristóbolo e Apolodoro me obrigam a multar-me em trinta minas, e oferecem fiança: multo-me, pois, em tanto, e eles vos serão fiadores dignos de crédito.





Terceira Parte - Sócrates se despede do tribunal

XXVII
Por não terdes querido esperar um pouco mais de tempo, atenienses, ireis obter, da parte dos que desejam lançar o opróbrio sobre a nosso cidade, a fama e a acusação de haverdes sido os assassinos de um sábio, de Sócrates. Porque, quem vos quiser desaprovar me chamará, sem dúvida, de sábio, embora eu não o seja. Pois bem, tivésseis esperado um pouco de tempo, a coisa seria resolvida por si: vós vedes, de fato, a minha idade. E digo isso não a vós todos, mas àqueles que me condenaram à morte. Digo, além disto, mais o seguinte a esses mesmos: É possível que tenhais acreditado, ó cidadãos, que eu tenha sido condenado por pobreza de raciocínio, com os quais eu poderia vos persuadir, se eu tivesse acreditado que era preciso dizer a fazer tudo, para evitar a condenação. Mas não é assim. Cai por falta, não de raciocínios, mas de audácia e imprudência, e não por querer dizer-vos coisas tais que vos teria sido gratíssimas de ouvir, choramingando, lamentando e fazendo e dizendo muitas outras coisas indignas, as quais, certo, estais habituados a ouvir de outros.
Mas, nem mesmo agora, na hora do perigo, eu faria nada de inconveniente, nem mesmo agora me arrependo de me ter defendido como o fiz, antes prefiro mesmo morrer, tendo-me defendido desse modo, a viver daquele outro.

Nem nos tribunais, nem no campo, nem a mim, nem a ninguém convém tentar todos os meios para fugir à morte. Até mesmo nas batalhas, de fato, é bastante evidente que se poderia evitar de morrer, jogando fora as armas e suplicando aos que perseguem: e muitos outros meios há, nos perigos individuais, para evitar a morte se se ousa dizer e fazer alguma coisa.

Mas, ó cidadãos, talvez o difícil não seja isso: fugir da morte. Bem mais difícil é fugir da maldade, que corre mais veloz que a morte. E agora eu, preguiçoso como sou e velho, fui apanhado pela mais lenta, enquanto os meus acusadores, válidos e leves, foram apanhados pela mais veloz: a maldade.

Assim, eu me vejo condenado à morte por vós, condenados de verdade, criminosos de improbidade e de injustiça. Eu estou dentro da minha pena, vós dentro da vossa.

E, talvez, essas coisas devessem acontecer mesmo assim. E creio que cada qual foi tratado adequadamente.

XXVIII
Agora, pois, quero vaticinar-vos o que se seguirá, ó vós que me condenastes, porque já estou no ponto em que os homens especialmente vaticinam, quando estão para morrer. Digo-vos, de fato, ó cidadãos que me condenaram, que logo depois da minha morte virá uma vingança muito mais severa, por Zeus, do que aquela pela qual me tendes sacrificado. Fizestes isto acreditando subtrair-vos ao aborrecimento de terdes de dar conta da vossa vida, mas eu vos asseguro que tudo sairá ao contrário.
Em maior número serão os vossos censores, que eu até agora contive, e vós reparastes. E tanto mais vos atacarão quanto mais jovens forem e disso tereis maiores aborrecimentos.

Se acreditais, matando os homens, entreter alguns dos vossos críticos, não pensais justo; esse modo de vos livrardes não é decerto eficaz nem belo, mas belíssimo e facílimo é não contrariar os outros, mas aplicar-se a se tornar, quanto se puder, melhor. Faço, pois, este vaticínio a vós que me condenastes. Chego ao fim.

XXIX
Quanto àqueles cujos votos me absolveram, eu teria prazer de conversar com eles a respeito deste caso que acaba de ocorrer enquanto os magistrados estão ocupados, enquanto não chega o momento de ter de ir ao lugar onde terei de morrer. Ficai, pois, comigo este pouco de tempo, ó cidadãos, porque nada nos impede de conversarmos horas juntos, enquanto de pode. É que a vós, como meus amigos, quero mostrar, que não desejo falar do meu caso presente. A mim, de fato, ó juízes - uma vez que, chamando-vos juízes vos dou o nome que vos convém - aconteceu qualquer coisa de maravilhoso. Aquela minha voz habitual do demônio (daimon, gênio) em todos os tempos passados me era sempre freqüente e se oponha ainda mais nos pequeninos casos, cada vez que fosse para fazer alguma coisa que não estivesse muito bem. Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males; pois bem, o sinal do deus não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de casa, nem quando vim aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso. Em todo este processo, não se opôs uma só vez, nem a um ato, nem a palavra alguma.
Qual suponho que seja a causa? Eu vo-la direi: em verdade este meu caso arrisca ser um bem, e estamos longe de julgar retamente, quando pensamos que a morte é um mal. E disso tenho uma grande prova: que, por muito menos, o habitual signo, o meu demônio, se me teria oposto, se não fosse para fazer alguma coisa de bm.

Passemos a considerar a questão em si mesma, de como há grande esperança de que isso seja um bem.

Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas: ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja, ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de existência e, para a alma, uma migração deste lugar para um outro. Se, de fato, não há sensação alguma, mas é como um sono, a morte seria um maravilhoso presente. Creio que, se alguém escolhesse a noite na qual tivesse dormido sem ter nenhum sonho, e comparasse essa noite às outras noites e dias de sua vida e tivesse de dizer quantos dias e noites na sua vida havia vivido melhor, e mais docemente do que naquela noite, creio que não somente qualquer indivíduo, mas até um grande rei acharia fácil escolher a esse respeito, lamentando todos os outros dias e noites. Assim, se a morte é isso, eu por mim a considero um presente, porquanto, desse modo, todo o tempo se resume a uma única noite.

Se, ao contrário, a morte é como uma passagem deste para outro lugar, e, se é verdade o que se diz que lá se encontram todos os mortos, qual o bem que poderia existir, ó juízes, maior do que este? Porque, se chegarmos ao Hades, libertando-nos destes que se vangloriam serem juízes, havemos de encontrar os verdadeiros juízes, os quais nos diria que fazem justiça acolá: Monos e Radamante, Éaco e Triptolemo, e tantos outros deuses e semideuses que foram justos na vida; seria então essa viagem uma viagem de se fazer pouco caso? Que preço não serieis capazes de pagar, para conversar com Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero?

Quero morrer muitas vezes, se isso é verdade, pois para mim especialmente. a conversação acolá seria maravilhosa, quando eu encontrasse Palamedes e Ajax Telamônio e qualquer um dos antigos mortos por injusto julgamento. E não seria sem deleite, me parece, confrontar o meu com os seus casos, e, o que é melhor, passar o tempo examinando e confrontando os de lá com cá, os últimos dos quis tem a pretensão de conhecer a sabedoria dos outros, e acreditam ser sábios e não são. A que preço, ó juízes, não se consentiria em examinar aquele que guiou o grande exército a Tróia, Ulisses, Sísifo, ou infinitos outros? Isso constituiriam inefável felicidade.

Com certeza aqueles de lá mandam a morte por isso, porque além do mais, são mais felizes do que os de cá, mesmo porque são imortais, se é que o que se diz é verdade

XXX
Mas também vós, ó juízes, deveis ter boa esperança em relação à morte, e considerar esta única verdade: que não é possível haver algum mal para um homem de bem, nem durante sua vida, nem depois da morte, que os deuses não se interessam do que a ele concerne; e que, por isso mesmo, o que hoje aconteceu, no que a mim concerne, não é devido ao acaso, mas é a prova de que para mim era melhor morrer agora e ser libertado das coisas deste mundo. Eis também a razão por que a divina voz não me dissuadiu, e por que, de minha parte, não estou zangado com aqueles cujos votos me condenaram, nem contra meus acusadores.
Não foi com esse pensamento, entretanto, que eles votaram contra mim, que me acusaram, pois acreditavam causar-me um mal. Por isto é justo que sejam censurados. Mas tudo o que lhes peço é o seguinte: Quando os meus filhinhos ficarem adultos, puni-os, é cidadãos, atormentai-os do mesmo modo que eu os vos atormentei, quando vos parecer que eles cuidam mais das riquezas ou de outras coisas do que da virtude. E ,se acreditarem ser qualquer coisa não sendo nada, reprovai-os, como eu a vós: não vos preocupeis com aquilo que não lhes é devido.

E, se fizerdes isso, terei de vós o que é justo, eu e os meus filhos.

Mas, já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas, quem vai para melhor sorte, isso é segredo, excepto para Deus.